Um projeto de lei que chegou à mesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob o pretexto de proteger membros do Judiciário e do Ministério Público ao classificar agressões contra eles como crimes hediondos, pode acabar servindo a outro propósito: dificultar o acesso público aos contracheques dessas autoridades. A proposta contém um “jabuti” — termo usado no Congresso para designar inserções estranhas ao tema principal — que altera a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) para restringir a divulgação de informações salariais individuais de juízes e procuradores.
O texto, já aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 8 de abril, propõe que a divulgação de dados pessoais de magistrados e integrantes do Ministério Público seja feita levando em conta os “riscos inerentes ao desempenho de suas funções”. Na prática, isso pode inviabilizar o acesso detalhado às remunerações, incluindo penduricalhos como auxílios e gratificações, frequentemente responsáveis por elevar os salários acima do teto constitucional.
A medida vem na esteira de esforços internos dentro do próprio sistema de Justiça para dificultar o monitoramento público. Em 2023, por exemplo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) alterou regras para exigir identificação prévia de quem solicita informações salariais, o que já representou um retrocesso nos mecanismos de transparência.
O especialista em proteção de dados Bruno Bioni, professor da ESPM, alertou que a proposta deturpa o espírito da LGPD. “A lei foi criada para proteger dados sensíveis de cidadãos comuns, não para blindar servidores públicos contra o escrutínio social. O salário de um agente público é, por definição, informação de interesse coletivo”, afirmou. Ele também chamou atenção para o risco de o Judiciário legislar em causa própria por meio de articulações políticas discretas, afastadas do debate público.
Enquanto isso, entidades corporativas tentam minimizar a manobra. O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Ubiratan Cazetta, defendeu que não se trata de esconder valores, mas de “proteger dados pessoais”. Segundo ele, o importante é que a sociedade conheça a folha de pagamento geral, e não os detalhes da remuneração de cada membro do Judiciário.
A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) seguiu a mesma linha: afirmou que garantir confidencialidade atende tanto à LGPD quanto à Constituição de 1988, que prevê o direito à privacidade. A entidade também argumenta que juízes vivem sob constante ameaça e que a exposição de informações individuais comprometeria a segurança desses profissionais.
O problema é que o sigilo sobre salários já vem se expandindo de forma silenciosa. Embora a Constituição exija transparência na administração pública, diversos tribunais e ramos do Ministério Público têm dificultado o acesso a dados, alegando “motivos de segurança”. Com a nova brecha legal, o risco é consolidar um padrão de opacidade institucional justamente nos setores do Estado que deveriam servir de exemplo de accountability.
A decisão agora está nas mãos do presidente Lula. O veto ao artigo da LGPD seria uma sinalização clara de compromisso com a transparência e o controle público. Já a sanção silenciosa de mais um dispositivo que blinda elites do funcionalismo público poderá fortalecer a ideia de que o Judiciário continua sendo uma “caixa-preta” intocável — e cada vez mais fechada à sociedade que o sustenta.